sábado, 25 de dezembro de 2010

Ironia do destino


      "Só quem nasce pobre sabe como é duro sobreviver.
      Morar em um bairro de periferia precário e longe de tudo.
      Depender de ônibus que passa lotado mesmo de madrugada e trabalhar, trabalhar, trabalhar e mesmo assim, não ter dinheiro suficiente para se alimentar decentemente, e ainda pagar o aluguel de uma casa que nunca será sua, entre muitos outros sufocos. 
      Em meio disso tudo, para alguns um acidente que lhe deforme o corpo mas lhe de uma indenização financeira que lhes permita pensar em um futuro melhor, até parece caridade de Deus.
      As coisas não precisavam ser assim.”     

      Há males que vem para o bem, seu moço. E bendita seja a boca abençoada que um dia sentenciou isso. Bendita seja!

      Eu mesmo sou testemunha disso, seu moço. De que este dito é sábio. Olhe a minha mão! Não se acanhe não. Pode olhar. Essa mão aleijada, seu moço, foi a minha salvação! Foi com os três dedos que aqui faltam que eu comprei minha casinha, depois de morar muitos anos de aluguel. 

      Não foi nada planejado não, seu moço! Isso seria até pecado. Ofenderia até a Deus. Um filho seu, criatura feita a sua imagem e semelhança, arrancar os dedos assim, por causa de dinheiro. É até sacrilégio pensar uma coisa dessa. Pensamento assim, seu moço, só pode ser fruto da influência do maligno. Coisa do Demo!

      O que se sucedeu, seu moço, é que aquele era um tempo de vacas muito magras. Ossudas de furar a pele, sabe? Pra pagar as contas eu comecei a fazer hora-extra feito um doido. Seu moço, eu quase não dormia! Cinco da manhã eu já tava no portão da fabrica, batendo cartão.

      O senhor não sabe, seu moço, o que é trabalhar, ganhar pouco, ter filhos pequenos e aluguel pra pagar. Seu moço, isso é de deixar qualquer um aperreado! De cabeça fervendo! O único alívio era ver o dinheiro da hora-extra  entrando no bolso. Quando isso acontecia, seu moço, eu até me esquecia do corpo todo moído. Era uma felicidade só, ver toda a família forrar o bucho com um pouco de carne. E depois ter um docinho pra por na boca.  

      Bem, foi nesse tempo de vacas magras, seu moço, que o feito se sucedeu. Como a fabrica trabalhava até de madrugada, certa vez para ganhar um adicional – o noturno – fui trabalhar no lugar de um amigo meu, que ia faltar. E lá tô eu, seu moço, já cansado do trabalho do dia, emendando turno. A fábrica a todo vapor. Barulho, barulho, barulho. E de repente, seu moço, o barulho me pareceu uma canção pra dormir, e eu pesquei. Fechei os olhos rapidinho, operando a maquina em serviço. Foi muito rápido, seu moço! Foi muito rápido! A escuridão e depois a dor. Quando abri os olhos, seu moço, jorrava sangue do lugar onde devia estar os meus dedos. Foi um alvoroço total no setor.

      Não teve esquema pra por os dedos de volta. Meus dedos foram mesmo pro lixo, seu moço. Corpo meu sem funeral. Mas não lamento não, seu moço. Foi até bom! Com a indenização que recebi pelos três dedos, comprei uma casinha linda. Com dois quartos e quintal! Saí do aluguel e agora até ajudo minha santa mãezinha, com um dinheirinho que mando todo mês.

      Tá vendo, seu moço? Não há males que vem para o bem?


Kátia Pessoa – 01/09/2010



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