quinta-feira, 19 de maio de 2011

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come


         “A água veio seguindo seu curso natural, como há milhares de anos faz, arrastando tudo a sua frente. Resultado: casas destruídas e pessoas mortas. De quem é a culpa? Do homem, é claro. Mas, de qual homem?
      Em um país sem igualdade social, com poucos ricos com muito dinheiro, que podem comprar casas e fazendas que ficam inativas ou terrenos maiores que muitos Estados, milhões de pessoas são pobres  e não têm onde morar, sendo alguns obrigados a construírem abrigo em áreas de risco.
      As pessoas que moram em lugares sem nenhuma segurança ou comodidade, o fazem por necessidade, porque ganhando um salário baixo não conseguiram um financiamento para comprar a sonhada casa própria, e o valor do aluguel se tornou muito pesado para ser pago todo mês. Nenhuma pessoa senão suicida, escolheria viver em local onde o risco de morte fosse eminente. Só uma pessoa masoquista moraria em um local onde uma chuva levasse embora tudo aquilo que ela comprou, pagando na maioria das vezes em várias prestações.
      A culpa dessa tragédia anunciada é do homem sim, mas não daquele que sem alternativa mora em áreas de risco como morros ou bairros que alagam, mas sim daquele que não faz nada para repartir o dinheiro que está nas mãos de poucos, deixando o povo desamparado.”       
             
      Desculpe moço, mas sair daqui não saiu não. Eu sei que o senhor tem até razão, e agradeço sua preocupação comigo, sua boa vontade em me ajudar, mas sair daqui não saiu.
      Moço, sair pra quê? Pra ir pra onde? Pra ficar morando em abrigo? Sem emprego e dependendo da caridade de estranho pra comer e vestir? Eu vou ficar assim por quanto tempo? Até morrer?
       Não tem essa de recomeçar e conseguir tudo de novo pra mim não, moço. Eu já tô velho, cansado. Não tenho esposa e nem filhos, se tivesse quem sabe? Podia até descer por causa deles, porque por mim não desceria. Como não tenho dependente, eu fico. Fico pra morrer em paz em meu cantinho, e se for vontade de Deus sepultado no barro também, com meus parentes.   
      Eu sei como é a vida lá embaixo, moço. Eu sofri muito quando morei lá. Não tem emprego pra todo mundo, as coisas são caras e só chega conta pra gente pagar. Dei graças a Deus quando meus parentes me conseguiram esta terrinha. Quando o primeiro parente chegou aqui no morro, foi chamando os outros. Tinha parente meu aqui em tudo que é canto. Em casa lá pra cima, em casa lá pra baixo e aqui do lado. Agora tá tudo morto. Tudo sepultado debaixo do barro, porque corpo nem acharam ainda. Só eu escapei. A água não levou a minha casinha. Ela passou aqui do lado, engoliu um monte de casa mas não chegou na minha.
      Tenho sorte de estar vivo? Tenho não. Tô sozinho no mundo de vez. Perdi tias, primos, sobrinhos, amigos, todos os que tinha, porque pai e mãe Deus me levou cedo. Eu tenho um irmão mais novo que caiu na estrada faz tempo, e nem sei por onde anda. Se bobear tá morto também, e eu nem fiquei sabendo. Essa casinha no morro é tudo que me resta.
      Olha aqui atrás moço: esta aqui é minha rocinha. Aqui eu planto o de come. E tem uns bichos também: galinha, porco, cabra, cachorro. Com eles vou me virando. E eu não iria sair daqui pra deixar meus bichos sozinhos, pra morrer a mingua, de sede e de fome. Eles sempre me fizeram companhia, e agora eles são tudo o que tenho. Se tiver que morrer, a gente morre junto!
      Casa? O governo não arruma não. Eu vejo como é que ficou o pessoal da enchente do ano passado. O governo pagou aluguel um tempo e parou. Casa deu pra uns poucos e o resto se virou como pode, se arranjando com parente, alugando cômodo, indo pra rua ou voltando mesmo pro morro de onde saíram.
      O moço acha que ninguém pensava que um dia isso podia acontecer? Descer água lá de cima e acabar com a gente aqui em baixo? Tem pessoa que nem dormia quando chovia, com medo da casa cair. Foi necessidade que pôs a gente aqui, foi necessidade. Ninguém escolhe morar em um lugar que pode matar a família da gente. Um lugar onde a chuva leva embora tudo o que a gente suou pra comprar, levou anos pra juntar.   
      Não tem nada pra mim lá embaixo não. É por isso que fico aqui. Fico sim. Com minha plantação e meus bichos. O senhor tem algo melhor a me oferecer?
                                   Kátia Pessoa – 10/02/2011

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