segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Atormentada






      "Muitas vezes vemos uma pessoa sofrendo ao nosso lado e não conseguimos perceber, de tão voltados que estamamos para nós mesmos, só enxergando os nossos probelmas."   
    

      Eu acordei e pus a mão em sua testa, para conferir a temperatura – ainda morna. Desassossegada, conferi também a respiração que lhe saia do nariz – leve, mas presente. E para completar o ritual de todas as manhãs, feito rigorosamente nos últimos quatro meses, encostei o ouvido em seu peito, para escutar as batidas de seu coração – estavam lá, baixas, mas audíveis. Por fim, o esperado veredito: estava vivo! Ele passaria mais um dia entre a gente.

      “Olha o que você me faz fazer, Roberto?”

      Que agonia, meu Deus! Que agonia! Conferir toda manhã se meu marido ainda está vivo, ou se no meio da noite desistiu de viver, e amanheci ao lado de um defunto. Não foi para isso que me casei, não foi para isso!

      “Você devia ter vergonha disto!”

      Há quatro meses ele cortou os pulsos. Eu juro que nem imaginava que uma coisa assim passava por sua cabeça, eu juro! Nem sequer conseguia pensar em um motivo para isto, porque ele era sempre tão sorridente com todos, estava bem no emprego, ganhava um bom dinheiro, tinha ótimos amigos, dizia que me amava, que nosso filho era uma benção em sua vida. Nosso filho só tem quatro anos, meu Deus! Imagine uma criança de quatro anos perder o pai assim, por suicídio? 
      “Covarde, você só pensou em si mesmo!”
      Isso que aconteceu com Roberto não foi descaso meu, nem falta de cuidado com ele. Não foi isso de deixar de olhar a pessoa com quem se vive, como acontece com muitos casais. O que aconteceu foi que um dia ele decidiu que não queria mais viver, assim, do nada. Não havia tido briga, discussão, nenhum desentendimento, nem comigo nem com ninguém. A gente até tinha feito amor naquele dia, mais cedo, logo que deitamos para dormir. Tinha sido tão bom, ele estava tão carinhoso. Como eu poderia saber que ele ia levantar lá pelas três da madrugada, pegar uma gilete que havia comprado e fazer aquilo? Cortar os pulsos, forte e fundo, não para dar um susto, mas para morrer mesmo? Minha sorte é que nem sei por que acordei na hora assustada, o procurei na cama e não achei, chamei seu nome e ele não respondeu, foi quando percebi a luz do banheiro acesa, fui até lá e vi aquilo, ele caído no chão, no meio de uma poça de sangue.

      “Canalha, você planejou tudo!”
      Ao ver o amor de minha vida ali, machucado, eu quase desmaiei. Senti a cor faltar em meu rosto, meu corpo esfriar como se tivessem colocado água gelada dentro no meu sangue, e uma fraqueza deixou minhas pernas moles. Eu pensei em nosso filho dormindo no quarto ao lado, tão pequeno, desprotegido, precisando tanto do pai. Eu também precisava daquele homem, do seu amor, dos seus braços, do seus cuidados.

      “Traidor, Roberto! É o que você é! Um traidor! Quando nos casamos você prometeu cuidar de mim até que a morte nos separasse, mas a morte não podia vir assim tão rápida, Roberto, ainda mais antecipada por você.”

      Fui até ele, chamei seu nome, bati em seu rosto, mas ele não acordava, mas percebi que estava vivo, graças a Deus! Sai correndo do banheiro chorando, gritando desesperada. Telefonei para a emergência, e para minha irmã também, pedindo ajuda, depois toquei a campainha dos vizinhos, tudo tão rápido, que nem me lembro bem. Ficou em minha cabeça apenas uma lembrança confusa daquela noite. Minha casa encheu de gente numa falação danada, isso me foi dando uma agonia, e uns pensamentos ruins me vieram a mente: “E se ele não sobrevivesse? E se ele tivesse alguma sequela? Como seria a vida deles agora? Ele tentaria se matar de novo?” Comecei a ficar tonta, tonta, tonta... Vi tudo rodar, as pessoas ficando apagadas, distantes, escutei o choro de meu filho que já estava no colo de alguém... Desmaiei. Acordei no sofá, com minha mãe e minha irmã ao meu lado. Roberto já tinha ido para o hospital.
      “Bem que meu pai dizia que você não servia para mim, ia me fazer infeliz. Ah, se meu pai estivesse vivo agora!”
      Roberto se recuperou bem, até rápido. Segundo os médicos só sobreviveu porque o socorro foi imediato, antes dele perder muito sangue. Roberto me pediu tantas desculpas. Elas começaram no hospital e continuam até hoje. Roberto diz que eu não merecia aquilo, que eu não tenho culpa alguma pelo que ele fez, que só fez aquilo porque estava desgostoso da vida, mas nem sabia explicar o por quê, e jurava amar a mim e a nosso filho, querendo o nosso bem.

      “Como nos ama? Quer nosso bem? Seu fraco, você ia nos deixar sozinhos!”
      Depois de alguns dias Roberto foi para casa. Ficou afastado do serviço para tratamento, passando com o psiquiatra, tomando remédios, fazendo algumas terapias. Somente há uma semana atrás voltou a trabalhar, e ele parece muito bem. Eu poderia até estar tranquila, achando que aquilo que ele fez foi um fato isolado, que não vai acontecer de novo, que ele está curado e vai morrer de velhice ao nosso lado, mas como eu posso ter certeza que isto é verdade, se ele também parecia bem antes, não dando nenhum sinal de contrariedade, e num estalar de dedos, sem aviso prévio, fez aquilo, cortou os pulsos com a intenção de sangrar até morrer, como um porco? Eu não consigo parar de pensar que ele pode tentar se matar de novo, e desta vez ficar seriamente machucado, ou morrer de verdade. Dai-me força, meu Deus, para enfrentar este tormento!

      “Agora eu vou ter que ficar aqui, servil, vigando cada passo que você dá, seu imprestável!”
      Meu coração é uma angustia só e meu corpo está cansado. Envelheci vinte anos em quatro meses. Estou abatida e sem ânimo algum para me ajeitar, arrumar as coisas da casa, mesmo cuidar de Roberto e meu filho, por isso minha mãe está passando uns tempos aqui em casa, me ajudando.

      “Eu estou horrorosa, acabada. Meu cabelo e minha pele estão um lixo. Olha o que você fez comigo, Roberto?”
      Nos primeiros dias do acontecido não conseguia nem dormir direito, acordando várias vezes no meio da noite assustada, procurando por Roberto. Quando o via na cama dormindo ao meu lado era um alivio, até relaxava, mas se acordava e ele não estava lá, saia como louca atrás dele. Às vezes acordava e o encontrava pensativo, e não dormia mais preocupada. Conversava com ele, sondava suas intenções, muitas vezes até o raiar do sol.

      “Eu estou virando uma morta-viva por sua causa, Roberto. Olha só o inferno que você transformou minha vida!”
      Nos últimos dias andei desmaiando sem motivo, sentido o coração disparar, com uma sensação de que vou morrer a qualquer momento, e meu filho vai ficar sozinho.

      “Eu vou acabar morrendo por sua causa, Roberto. Morrendo de desgosto de ser sua esposa! Era isso que você queria, seu desgraçado?”
      Para não ser pega de surpresa em uma emergência como da primeira vez, onde por causa do incidente com Roberto corri de madrugada na casa de vizinhos, usando uma camisola curta, quase pelada, agora só durmo de vestido de microfibra preto, combinação perfeita de cor elegante com tecido que não amassa. Se eu tiver que ir ao médico para socorrer marido suicida, ou eu mesma for levada às pressas, vitima de um colapso nervoso, ao menos estarei adequadamente vestida.

      “Viu a humilhação que você me fez passar na frente de todos, Roberto?”
      É assim que tenho passado os meus dias: esperando o pior acontecer!

      “Mas eu vou me vingar de você, Roberto! Eu vou me vingar! Você pode esperar!”

      Mas eu amo meu marido. Eu amo. E faço tudo por ele!


Kátia Pessoa – 10/08/2011



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